"o resto é mar. é tudo o que eu não sei contar..."

29 novembro 2011

Elegia a José

Quando você se foi
as raízes daquele lar
mudaram de rumo:
a laranjeira murchou;
dos seus galhos apenas
uma parca sombra aproveitada
pelos cães que rondam
famintos o aposento que era seu.
Como era bom ver a laranjeira em flor:
grande, robusta, verde, carregada.

Desde quando você se foi
os bichos vêm morrendo à míngua,
de fome, de tristeza e do pior mal:
o descaso. As vacas exibem
seus couros e ossos languidamente
pela caatinga vermelha do inverno.
E como era bom ver Jaibara e suas crias:
gordas, viçosas, imponentes, prenhes de vida.

Quando você se foi
as terras pelas quais você trabalhou
ficaram minúsculas.
Os frutos do ventre da sua esposa
dilapidaram ferozmente todo seu resquício.
E todo aquele chão que abrigou sua família
já não leva mais o nome rocha, tão seu.
Era bom ver um pouco de nós ali.

Quando você se foi
a pobreza devastou cada um de nós.
E antes fosse a pobreza de vinténs,
que estes se vão, mas podem (sempre podem) voltar.
O que nos assolou foi uma pobreza tamanha
de espírito, de caráter.
A mesquinhez corroeu nossos melhores atos,
os mais enobrecedores sentimentos.

Desde que você se foi
percebemos como tudo era melhor, mais fácil
menos doloroso, menos dificultoso.
Percebemos que não sabíamos nada:
o valor da Laranjeira em flor,
o valor da Jaibara e suas crias,
O valor do nosso lar
o valor da nossa terra, rocha,
tão dessemelhante a nós.
Mas isso tudo eu só pude saber hoje:
Depois que você se foi.

20 novembro 2011

Remembranças



Olho o céu sem lua durante toda a noite
e nenhuma estrela me distrai.
Tento lembrar um dia, uma data
e o que me ocorre são fragmentos de memória,
pequenas peças de um imenso quebra-cabeças.
Então, preencho com sonhos, impressões,
desejos que eu não sei se foram realizados,
as lacunas que se desenham na memória minha.
E me pergunto: é isso o que fica?
Um ponto branco no breu da lembrança?
Percebo o céu mais uma vez
e me vejo uma estrela:
brilho intensamente antes de apagar,
e viro lembrança nos olhos de quem me viu.

Se eu quiser falar com Deus

Se eu fosse um padre

Mário Quintana

Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,
não falaria em Deus nem no Pecado
— muito menos no Anjo Rebelado
e os encantos das suas seduções,

não citaria santos e profetas:
nada das suas celestiais promessas
ou das suas terríveis maldições...
Se eu fosse um padre eu citaria os poetas,

Rezaria seus versos, os mais belos,
desses que desde a infância me embalaram
e quem me dera que alguns fossem meus!

Porque a poesia purifica a alma
...e um belo poema — ainda que de Deus se aparte —
um belo poema sempre leva a Deus!


Texto extraído do livro "Nova Antologia Poética", Editora Globo - São Paulo, 1998, pág. 105.

17 novembro 2011

A ponte



Entre a ponte e a terra firme
penso suspensa, distante, parada.
Não sei se atravesso e me faço brilhar o olho,
refletindo as virgens descobertas.
Ou se fico e me apoio na certeza chã,
que me ampara e me protege de mim
e dos sonhos que me esperam.

Entre a ponte a terra firme
existem cores, ventos e perfumes
outros que minha mente teme conhecer.
Mas sigo, apesar da dor de deixar
minhas claras certezas. Apesar do medo
de não encontrar o que quis. Apesar
de mim, atravesso a ponte que me mata.

E me renasce. A ponte, essa, dolorosa,
me atravessa e eu a ela. E somos uma:
Prenhe de dúvidas, incertezas
e sem convicção alguma sobre a escolha.
Posso voltar, posso seguir ou ficar
no meio do caminho. Sem pedra.
As pontes se cruzam e na travessia
o que vale é não se deixar levar.