"o resto é mar. é tudo o que eu não sei contar..."

09 outubro 2018

Sermão do Mandato

(...) O primeiro remédio que dizíamos, é o tempo. Tudo cura o tempo, tudo faz esquecer, tudo gasta, tudo digere, tudo acaba. Atreve-se o tempo a colunas de mármore, quanto mais a corações de cera? São as afeições como as vidas, que não há
mais certo de haverem de durar pouco, que terem durado muito. São como as linhas que partem do centro para a circunferência, que tanto mais continuadas, tanto
menos unidas. Por isso os Antigos sabiamente pintaram o amor menino; porque
não há amor tão robusto que chegue a ser velho. De todos os instrumentos com que
o armou a natureza, o desarma o tempo. Afrouxa-lhe o arco, com que já não atira;
embota-lhe as setas, com que já não fere; abre-lhe os olhos, com que vê o que não
via; e faz-lhe crescer as asas, com que voa e foge. A razão natural de toda esta dife-
rença, é porque o tempo tira a novidade às cousas, descobre-lhe defeitos, enfastia-
lhe o gosto, e basta que sejam usadas para não serem as mesmas. Gasta-se o ferro
com o uso, quanto mais amor? O mesmo amor é a causa de não amar, e o de ter
amado muito, de amar menos.
VIEIRA, Antônio. Sermão do Mandato. In: Sermões. 8. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1980.

Sobre a fotografia: em primeiro plano, desfocado, dois exemplares do século XVIII da obra Reino da Babilônia Vencido pelas armas do Empíreo, de autoria de Leonarda Gil da Gama, escritora portuguesa. Os dois exemplares encontram-se no Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro, onde os segurei em mãos (15 a 19/07/2018), e senti a ação do tempo sobre eles. Dias bons.
sabe o que me faz florescer girassóis nos olhos?
esse cheiro de chuva, essas nuvens densas e cinzas
que escurecem meu quarto ainda quando o dia reina lá em cima.

sabe o que me pinta arco-íris nas mãos?
lembrar um verso do pessoa, do drummond
e saber que angústia sempre existiu.

20 abril 2015

Não queira saber-me mais.
De tudo o que sou, 
o mundo já sabe a infértil espuma.

Não queira entregar-me mais.
A vida não me permitirá segurar
Mais esse laço e fazer dele um nó.

Não queira dizer-me mais.
E fazer da confissão a dívida
que nos segurará até a curva do horizonte.





10 junho 2014

Ela escondia o rosto entre as mãos, para chorar. Não soluçava. Esfregava bem os olhos com os nós do dedo indicador e sorria para quem estivesse ao lado: "É tanta poeira!" Um coração dilacerado pela solidão dos abraços vãos, dos beijos jogados ao vento, desperdiçados pelas faces vis. Ela escondia o rosto entre as mãos, para chorar. E soluçava ao se perceber sozinha. No à vontade de sua sozinhez era bom contemplar o nó na garganta se desfazendo, o rosto lavado com água e sal, os olhos vermelhos, a pupila dilatada. Ela chorava e se sentia bem. Até quando chorar seria parte dela? Até quando não chorar chegaria a ser opção? Até quando?

13 fevereiro 2014

Sangria in verbis

é preciso sangrar o verbo. fazer das palavras glóbulos vermelhos, e da oração puro sangue.

03 maio 2013

Noivas

As noivas de maio fotografam na estaiada de frente para a favela. Manter a tradição faz parte dos seus genes. As noivas de maio fecham, para o beijo, os olhos, que permanecem fechados às reais necessidades expostas às mãos abertas. O perfume, o sapato,as meias, luvas esbanjam caprichos, exibem vontades, ostentam o gosto fabricado no mercado e estampado nas revistas. As noivas de maio, cheias de si mal ouvem as prédicas do padre ou as recomendações legais do juiz de paz. Importa mais a pontualidade do chofer (!!). As noivas de maio não poupam glacê seja no bolo, seja nas mechas. E se confortam em saber que as sobras (havendo...) poderão ser, gentilmente, repassadas a suas criadas ou enviadas em tigelas para aquele parente distante. As noivas, durante todo o ano, limparão a alma ao ajudar aquela instituição de caridade, ao depositar o dízimo, ao dar a esmola para o garoto no sinal. As noivas merecem, sem merecer, uma festa em que esqueçam a verdadeira miséria do mundo, sem perceber a pobreza que as sufoca no branco véu.