"o resto é mar. é tudo o que eu não sei contar..."

11 janeiro 2010

a ineficácia do discurso impessoal em A via láctea


O título é uma brincadeira, na verdade, uma tirada de sarro do academicismo desbragado que anda à solta por aí (contaminando até mesmo a srta. dona deste blog). Mas o conteúdo do post é seríssimo! (será? rsrsrs)

Bom, quem de nós não conhece a famosa canção do Renato Russo, gravada no álbum A Tempestade, no ano de 1994? O famoso refrão repercute ainda hoje em todas as bocas que querem dar consolo: "Quando tudo está perdido sempre existe um caminho, quando tudo está perdido sempre existe uma luz..."
Pois é. Dia desses ouvi uma pessoa cantarolar o bendito refrão. Mas só o refrão. Aí, eu, quase que instantânea e mecanicamente completei a canção: "mas não me diga isso..." Aí, na hora, pensei: caramba! é um diálogo! É claro, está explícito na letra que o eu lírico conversa com alguém, contando o que ele sente, como estão sua mente e seu corpo. Mas a música não é sobre superação, não é a auto-ajuda explícita do refrão. A música expressa simplesmente a lamentável situação em que uma pessoa tenta convencer outra, em seu estado deplorável, de que tudo vai terminar bem, de que as coisas vão mudar (e para melhor!). Vejamos:

"Quando tudo está perdido
sempre existe um caminho,
quando tudo está perdido
sempre existe uma luz.
Mas não me diga isso."

A situação é mais ou menos essa: "Tá bom, eu sei que você vai dizer que tudo vai ficar bem por que você sabe que, na verdade, nada vai melhorar e eu tô cheio de ouvir a mesma coisa de todos que passam por aqui." Dizer que sempre existe um caminho e uma luz é apenas mais uma frase feita para qualquer circunstância. É uma espécie de fórmula para consolar não aquele que sofre, mas apenas aquele que fala! Por que as pessoas sentem-se na obrigação (moral??) de dar esperança a quem está na pior. Então, para desencargo de consciência, diz-se o "vai ficar tudo bem...". A música prossegue:

"Hoje a tristeza não é passageira
hoje fiquei com febre a tarde inteira
e quando chegar a noite
cada estrela parecerá uma lágrima."

Não é a toa que o eu lírico está triste. Ele sabe que as coisas não estão bem. Ele não está bem fisica e mentalmente. E essa tristeza tem um motivo. E forte! Ou será que "cada estrela parecerá uma lágrima" é choro pouco? Imagine!

"Queria ser como os outros
e rir das desgraças da vida
ou fingir estar sempre bem
ver a leveza das coisas com humor.
Mas não me diga isso."

E os conselhos continuam: "Um dia nós riremos disso tudo..." ou "Isso deve ser encarado como uma lição, como um aprendizado..." e ainda "Isso é mais uma provação.", "deus sabe o que faz...", "O Fulano não sei das quantas estava muito pior...", "aconteceu coisa muito pior com o Sicrano"... É claro que e o eu lírico sabe de cor todas essas frasezinhas que não dizem nada a quem ouve e ele responde: "Eu já sei disso tudo, não me fale mais nada sobre isso".

"É só hoje e isso passa
só me deixe aqui quieto
isso passa
amanhã é um outro dia, não é?"

Então ele se apropria do discurso impessoal do seu interlocutor para usá-lo contra ele. Para, de certo modo, concordar com o que o interlocutor diz como forma de se livrar daquela companhia que não entende nem vai entender nada do que ele está sentindo. Por que cada dor dói diferente em cada pessoa. E a dor dele é dele e somente dele.

"Eu nem sei por que me sinto assim
vem de repente um anjo triste perto de mim
e essa febre que não passa
e meu sorriso sem graça
não me dê atenção
mas obrigado por pensar em mim."

Algumas pessoas dirão: "É um egoísmo muito grande, uma pessoa se deixar afundar no sofrimento. Essa pessoa só pensa em si. Não percebe que existem amigos, companheiros que querem o seu bem, que se esforçam para vê-lo feliz!" Cara, mas nos sentimentos ninguém manda. Ninguém controla o que sente. Egoísta é aquele que quer que o outro seja feliz só por causa de sua presença. Por decreto do pretenso amigo, é proibido ficar triste! E perceba que o eu lírico não tem nada de egoísta: ele reconhece a preocupação (na maioria dos casos, ela é legítima!): "Não ligue pro que eu digo. E obrigada por tentar me ajudar, obrigada por pensar em mim."

"Quando tudo está perdido
sempre existe uma luz,
quando tudo está perdido
sempre existe um caminho.
Quando tudo está perdido
eu me sinto tão sozinho,
quando tudo está perdido
não quero mais ser quem eu sou."

O final da canção mostra a pessoalização do discurso do interlocutor: o eu lírico adapta as frases feitas à sua realidade: "Quando tudo está perdido eu me sinto tão sozinho, não quero mais ser quem eu sou..." Ou seja: Sei que as coisas não vão melhorar, pelo menos a curto prazo. Não sei o que fazer, não sei como vou sair dessa, estou só, perdido e seria bem melhor se eu não fosse eu.

"Mas não me diga isso
não me dê atenção
e obrigado por pensar em mim."

Os últimos versos da canção trazem o sentimento do eu lírico diante da situação: "Não leve a sério o que eu digo, pois você pode perder seu tempo tentando me convercer do contrário. Não me diga mais nada e muito obrigado pela preocupação, pela atenção."
A letra é mórbida. Não há como negar. E vai plenamente de encontro às interpretações positivas e de auto ajuda. Na verdade é uma negação a auto ajuda, da maneira como esta é cultivada hoje. Eu diria que a música ensina muito a quem a interpretar de modo mais profundo. Não é uma frase feita, mais um clichê cantado: A via láctea traz consigo o poder de ir ao mais profundo do eu. Ela faz chegar àquele ponto obscuro da própria mente, onde a gente, muitas vezes, se nega a ir, exatamente por conta da escuridão.

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