"o resto é mar. é tudo o que eu não sei contar..."

12 fevereiro 2010

a negra silhueta caminhando no escuro tinha o jeito leve dele se levar. ele vinha, indefinido, pela extensão da rua ainda molhada pelo chuvisco demorado. eram já 23h e, apesar do cansaço, eu ainda estava na rua. a porta de casa estava à minha frente, mas as luzes da cidade me prendiam à calçada. resolvi ficar e fumar um pouco.
acendi o isqueiro. a silhueta começou a caminhar em minha direção. depois de alguns anos a gente embrutece e não sente mais nada, nem medo. não me movi. fiquei parada na calçada. coloquei o cigarro na boca sem acendê-lo.
tentei disfarçar, olhei para outro lado, mas queria mesmo ver o seu andar e lembrar da esperança que alimentei durante um longo tempo de vê-lo voltar com as malas que ele levou, com as fotografias rasgadas e com todas as palavras sem sentido que ele me disse na última vez.
mas não. olhei para o outro lado da rua ouvindo cada vez mais próximos os passos dele. um sapato claro, calça jeans, camisa branca. era ele! tive certeza! e então comecei a treinar as primeiras palavras a dizer: esperei tanto por você... naquele dia, quando eu fiquei... quando você foi... por que você foi? você nunca me disse... eu nunca soube... quem? quando? aonde você se escondeu? a casa, as coisas, nós... me perdi. eu me perdi naquele passado já um pouco apagado e fantasiado pelos artifícios da memória.
de repente, os passos pararam de se fazer ouvir, minha vista embaçou, o cigarro caiu e eu nem me dei conta. sentada na calçada, resolvi olhar novamente em direção a ele. parado ao meu lado, de pé, aquele homem trazia uma grande mochila nas costas e ofegava. "Preciso ir à rodoviária." - ele me disse. a voz destoou da minha expectativa. foi quando olhei para o seu rosto e vi que outros eram os mundos daquele que ia ao meu encontro. que outras eram as dúvidas e preocupações daquela silhueta tão familiar. que outro era aquele homem, tão nítido em minha memória. "O próximo ponto de ônibus é por ali." - respondi sem encará-lo.
ele se foi. e eu retomei o vazio das minhas mãos, do meu olhar no horizonte. sentada na calçada, catei do chão o cigarro e acendi uma pequena luz na minha vida.

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