"o resto é mar. é tudo o que eu não sei contar..."

19 fevereiro 2010

os pecados vitais de Ester

parada na soleira da porta, Ester não sabia mais se queria entrar. do que ocorrera dias atrás, só sobrou apenas uma dor não muito funda, algo quase imperceptível, só lembrança mesmo, dessas que demoram a voltar, mas que, ao voltar em visita, devastam uma noite inteira e cavam profundas sombras embaixo dos olhos.
o sol do meio dia queimava-lhe as costas, o suor escorria pelo pescoço, percorria a espinha e só parava no cós da calça já encharcado. as têmporas a latejar. sem malas, sem bolsa... o dinheiro trocado no bolso esquerdo. e a vontade de voltar pra casa da mãe.
era uma menina até então. suas fugas resumiam-se ao quintal da casa do vizinho, território sem segurança alguma. no fim da noite estava de volta ao quarto e à janta em família, na sala, todos em volta da mesa, em prece, quase entregues à pressa de comer. dessa vez fora diferente. precisava desafiar a si própria para saber o gosto de pensar por si. e, embora não trabalhasse e sua parca experiência doméstica nada de extraordinário lhe ofertasse, sabia o preço da fuga.
Ester tinha se cansado de cantar no coral da igreja. e, ao pedir ao pai que a liberasse de tal ministério, recebeu mais do que um não: "você vai ficar um mês a pensar nessa insensatez, sozinha, dentro do seu quarto. ore a deus para que ele consiga libertar sua alma dessa sombra de dúvida." ela sabia que não pedia muito e sabia bem mais que não merecia aquilo. ela só não se sentia mais tão bem em desempenhar uma tarefa que exige bem estar. Ester cometeu o primeiro pecado de sua vida: foi sincera.
ela ainda acreditava em deus e tinha uma imagem pura dele. ela sabia que ele podia ser totalmente diferente do que pintam, sabia ainda de todas as especulações sobre a vida sentimental de cristo e não se escandalizava por isso. Ester queria ser livre para pensar. e só.
ela poderia fingir que estava tudo bem, continuar a cantar no coral, rezar à mesa contente e, por dentro do quarto, trancada na madrugada, inventar filosofias próprias, imaginar deuses e deusas, ler todos esses caras que falam sobre o delírio divino... poderia. mas não seria Ester. seria outra pessoa talvez mais racional, comedida e centrada, mas não seria Ester: plena de sentimento e pulsão pela vida em sua forma mais plena.
ela se trancou a primeira noite no quarto e orou a deus que tirasse qualquer sombra de insatisfação da sua vida. qua a iluminasse em suas decisões, que a protegesse de pessoas más que poderiam se aproveitar de alguma sua fragilidade... e adormeceu com A mulher de 30 anos entre os lençóis. atrasada uns 10 anos, Ester começava a entender as balzaquianas.
no dia seguinte a essas preces, a ida ao colégio não foi trivial. no meio do caminho tinha uma pedra, ela parou para olhar e conheceu aquilo que já era tão familiar: alguns caminhos são repletos delas, mas mesmo assim são caminhos e levam quem os percorre a algum lugar. ela decidiu não mais voltar à casa.
com medo de que algo acontecesse ao irmão mais novo, seu guarda pessoal, entrou no colégio junto com ele e depois saiu, deixando mochila, cadernos e livros no banheiro. sem bilhetes, nem cartas, nem nada. Ester deixava a segurança do seu mundo por uma incerteza que o tempo poderia provar-lhe banal... mas mesmo assim ela foi, num acesso de loucura e lucidez simultâneos.
o primeiro dia foi doloroso: sem pai, mãe, irmão, conforto e segurança, Ester passeava pelas ruas e pensava numa forma de não voltar atrás. caminhou sozinha pela cidade até o amanhecer. ela pensava tanto: em como a vida é boba, em como se defende uma ideia até o próprio sangue lavar uma bandeira... e como aquilo estava mais do que presente em sua vida.
o dia seria longo. a dor seria longa. voltar foi seu pensamento. pé ante pé, percorreu o caminho de volta. ela sabia que todos estavam alvoroçados, inconsoláveis, perguntando-se motivos, porquês... ela resolveu voltar e encarar raios e trovões por todos os lados. pelo menos passaria a tempestade em casa.
foi quando Ester parou à porta de casa. era meio-dia, a mesa do almoço estava posta e ela pôde ouvir a prece de seu pai: "senhor, ajudai nossa filha amada, Ester, a encontrar o caminho de casa. ilumine seu coração e seu entendimento no sentido de fazê-la compreender o seu lugar no rebanho. faça com que ela volte reconhecendo seu erro de tentar encontrar outro caminho que não seja esse indicado por seu sangue, se essa for sua vontade. Amém!" - Assim seja, repetiram a mãe e o filho.
Ester ouviu tudo ali, na porta. parada, calada, receosa de tudo... até da vontade de deus. Ester não sabia se queria entrar e assumir uma cruz que não era sua. então, com medo e coragem no peito e nos pés, ela deu um passo para trás. o suor continuava a escorrer, o sangue latejando em suas veias. Ester não mais voltaria à casa paterna: ela seguiu a procurar o seu deus. ela não sabia esperar, resignada, o tempo trazer milagres: seu segundo pecado.

Um comentário:

Anônimo disse...

Ester, ester ...