"o resto é mar. é tudo o que eu não sei contar..."

25 dezembro 2010

Noite feliz

Vesti a calça jeans, camiseta branca, calcei uma sandália e saí. Eram onze horas da noite e eu saía pela rua como se onze da manhã. Saí por não agüentar a casa repleta de vozes, corpos e conversas que eu não conseguia distinguir. Minha presença não fazia diferença.

Segui até o mirante deserto. Subi as escadas e, enquanto subia olhava para baixo, tentando distrair-me com alguém que passava, mas tudo o que vi foi um cachorro deitado na praça, creio que dormia, tão quieto estava. Subi, cheguei ao topo, deitei. Olhei para o céu e senti as estrelas perto de mim, o céu, quase colado ao meu peito, sem lua e o cheiro bom da madrugada chegando.

Tentei não pensar, mas sempre lembrava algo e me perguntava a razão de existir. Era Natal e eu ali. Sozinha, iluminada pelas luzes do mirante, o enfeite de Natal. Deixara minha casa, os convidados, as comidas e as bebidas. Precisava de paz. Sozinha, remoia o passado sempre presente e sentia angústia por não me compreender. No Natal, todos esperam a ceia, meia hora depois, saem de volta para suas casas, em qualquer outro lugar. E o que fica? Louça suja.

Não sentia vontade de chorar nem de voltar para casa. Só queria estar ali o tempo necessário para me encontrar e o remédio para a dor que eu sentia. Logo, logo amanheceria e eu continuaria com a mesma dor e ainda teria que voltar para casa. Sozinha.

Começo a me convencer de que somos sós. Amamos gratuitamente, suamos e batalhamos para nós e a vida acaba sendo um jogo que você joga sozinho. A casa estava cheia e eu só. Agora estou vazia ao meu redor e cheia de mim aqui dentro. Estou cansada, mas não tão entorpecida que me faça dormir. Quisera ter o sono pesado para não pensar e dormir sem sonhar.

Meia-noite ouvi “Noite feliz” bem longe. Saberia aquela mulher o que a cantiga quer dizer? Repetimos como papagaios uma ladainha sem sentido. Quisera ter a ignorância da maioria, talvez estes questionamentos não existissem em mim. Dói pensar. Sou medíocre, mediana, tudo pela metade: a vida, os sonhos, os projetos. Tudo artificialmente colorido, e o miolo se esconde incolor.

Quisera ser o cachorro dormindo quieto na praça. Sem se incomodar com a noite feliz, sem sentir o ronco da sua barriga, as pulgas a sugar seu sangue anêmico. Seria ele satisfeito com o que tinha? Seria tão infeliz quanto eu? Seria tão injusto quanto eu?
Os primeiros raios de sol iluminavam o cantinho de céu, o cheiro bom da madrugada há muito tinha se ido e tivera eu a impressão de que acabara de chegar e deitar.

Levantei, olhei para baixo e uma vertigem me fez segurar firme a barra de ferro em que me apoiava. Fechei os olhos e tornei a abri-los bem devagar. Olhei a praça e lá estava o cachorro: tranqüilo e deitado no mesmo lugar. Desci devagar, olhando os degraus. Ninguém por perto, nem no mirante, nem na rua que dividia a praça. E o cachorro lá. Fui em direção a ele, parei ao seu lado e ele não acordou. Bati o pé e nada. Estava tão doce sua expressão... Estava morto.

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