"o resto é mar. é tudo o que eu não sei contar..."

27 fevereiro 2011

Pra você eu conto, Moacyr Scliar



"(...)
Era um hotel. Casa já não tinha mais, e a professora de Ciências, que poderia hospedá-la, há muito se mudara para São Paulo. Um hotel bem modesto; pelo jeito, o dinheiro não lhe sobrava.
Mas nada daquilo importava. Ignorando o olhar suspeitoso do homem da portaria, subi de dois em dois os degraus da estreita escada que levava ao segundo pavimento. Ofegante, bati à porta. Já vou, disse uma voz abafada lá dentro. Uns segundos depois a porta se abriu e ali estava ela, diante de mim, a Marta.
A mesma Marta: o mesmo olhar penetrante, os mesmos cabelos ruivos, se bem que cortados curtos. Não, não era a mesma Marta; o tempo fora cruel com ela, rugas profundas marcavam-lhe a face, a boca apresentava-se caída. Sim, era a mesma Marta, o mesmo brilho nos olhos. Não -
Que importava? Abraçamo-nos chorando. De repente, o tempo detinha-se; não, o tempo voltava atrás; eu já não era o jovem empresário casado, com um filho; eu era o adolescente despertando para sua primeira paixão, tremendo de desejo como tremera da primeira vez em que a beijara.
Conduzi-a até a cama. Tentou protestar, debilmente; mas desta vez eu não aceitaria recusas; e nem ela queria recusar, acho. De qualquer modo, deixou-se levar. Deitamo-nos. A velha cama, de ferro, estreita, rangia a cada movimento; começamos a rir. Ríamos às gargalhadas, ríamos tanto que as lágrimas nos vinham aos olhos. E então ficamos subitamente sérios; ela me olhou e puxou-me para si, e fizemos amor, suavemente a princípio, furiosamente depois; possuídos não apenas pela paixão, como também pela nostalgia de algo que não sabíamos bem o que era, mas pelo qual ansiávamos desesperadamente.
(...)
Não, de mim eu não queria falar. Para quê? Tudo que me tinha acontecido, tudo o que eu tinha feito não importava; todos aqueles anos correspondiam a uma espécie de existência suspensa, congelada, um longo intervalo entre momentos de real paixão. Ela me ensinara a amar, e me ensinara como tudo deve ser ensinado: sem esforço, por sua simples presença. Como um farol guia o barco perdido, assim me guiara... E agora que a tinha encontrado, não mais a abandonaria. E foi o que eu lhe disse: que pretendia ficar com ela para sempre."

Moacyr Scliar. Pra você eu conto (1990)

Foi com muita tristeza que recebi a notícia da morte deste escritor. Suas palavras simples conduziram meus primeiros passos na tentativa de compreender nossas atitudes. Nós, seres humanos, tão cegos às vezes. Tão imediatistas quase sempre. Não sabemos o que o tempo faz conosco, com nosso corpo e nossa alma. Entregar as aflições nas mãos do tempo não é tarefa das mais fáceis, mas é a única atitude possível para se viver um pouco mais levemente, mais livremente, mais amavelmente.

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