"o resto é mar. é tudo o que eu não sei contar..."

29 abril 2011

fosso



"Que poder teria lançado esta luz nos olhos tristes e sonhadores desta mocinha? Quem fez subir o sangue às suas faces pálidas e murchas, quem fez com que o seu rosto suave mostre agora uma tal paixão? Por que o seu peito arfa? Quem foi que, assim tão de repente, trouxe força e vida e beleza ao rosto da pobre menina, cujo sorriso suave brilha agora e se transforma num riso ardente?" E olhamos à nossa volta, procuramos alguém e começamos a perguntar e a adivinhar... Mas esse momento é passageiro e talvez no dia seguinte voltemos a encontrar o mesmo lânguido olhar anterior, a ver de novo o pálido rosto e a mesma indolência e simplicidade de movimentos, e até talvez alguma coisa nova, uma espécie de desgosto, como sinal de arrependimento e de enfado por aquele breve instante de alegre animação... E então lastimamos que a beleza tenha desaparecido tão breve e irrevogavelmente, que tenha brilhado diante dos nossos olhos com uma luz tão falsa e enganadora... tristeza por não termos chegado sequer a tomar-lhe o gosto..."

Trecho da obra Noites Brancas(1848), de Fiódor Dostoiévski.
Imagem: La Nièce du peintre Assisse(1932), de André Durain.

18 abril 2011

O quase é tão cheio de tudo

Aquele que não foi amado é o que mais ama.

(...) Ai, como dói quem espera amar. Quem dedica uma vida à disciplina da paciência, torcendo para o sexo melhorar o casamento, torcendo para o casamento melhorar o sexo, torcendo para que o marido não fique bêbado ao menos uma vez, torcendo para que a esposa não reclame ao menos uma vez, dormindo e esquecendo a tristeza, acordando e repondo a esperança, aqueles que resistem e talvez envelheçam sem completar seus sonhos, que respeitam as pequenas alegrias porque podem ser as únicas, que não decidiram se diminuem a expectativa para sair da solidão ou aumentam as exigências para justificá-la.


Como eu amo quem se importa em amar, apesar de tudo. Apesar de tudo. (...)

Fabrício Carpinejar

16 abril 2011

Ecclesiastes de Salamam - Capitolo III



1. Todallas cousas tem seu çerto tempo, e todas passam debaixo do çeo per seus espaços.
2. Tempo de naçer, e tempo de morrer. Tempo de prantar, e tempo d'arrancar o prantado.
3. Tempo de mattar, e tempo de sarar. Tempo de destruir, e tempo de edificar.
4. Tempo de chorar, e tempo de rir. Tempo de tristeza, e tempo d'alegria.
5. Tempo d'espalhar pedras, e tempo de as colher. Tempo d'abraçar, e tempo de s'alongar dos braços.
6. Tempo de acquirir, e tempo de perder. Tempo de guardar, e tempo de despender.
7. Tempo de talhar, e tempo de coser. Tempo de fallar, e tempo de callar.
8. Tempo d'amar, e tempo d'aborreçer. Tempo de guerra, e tempo de paz.

Trecho da tradução do humanista português Damião de Góis do livro bíblico de Eclesiastes, 1538.

Não é por acaso que é chamado O Livro da Sabedoria.

Imagem: A Persistência da Memória, Salvador Dalí, 1931.

10 abril 2011

"Deixe-se guiar pelas fadas"



Recomendação do Fauno à princesa Moanna, em "El laberinto del fauno".

03 abril 2011

na penumbra

na penumbra,
negro olho iluminava
o breu da dúvida.
arfar ligeiro
vibrava o peito
na única noite
daquelas duas almas.
paralelas cruzavam-se,
como a música
um dia soou aos ouvidos.
minutos caindo lentos
na noite, pingando
no telhado improvisado
que os abrigava.
dois. apenas. sós. unidos.
sem passado, sem por vir.
na penumbra,
o que era certo foi sentido.
os sentidos certificavam.
as mãos se conheciam
e permitiam-se intimamente.
como se soubessem do adeus,
as mãos guardaram
e amaram o perfume recendido
na penumbra daquela única noite
que caiu sobre as duas almas.

lamento à Capitu

a inocência atrás dos olhos da menina me perturba. não que o leite derramado do peito não deva ser chorado, mas forjar inocência é um crime, assim como fingir amor. não estou aqui para dizer o certo e condenar o errado. acho até que essas duas palavras são dois equívocos grandiosos, principalmente quando reconheço a impossibilidade de enquadrar todas ações em apenas duas caixas tão pequenas.

os olhos da menina me perturbam por que eu queria que ela visse o que eu não consigo ver, nem descrever. meu defeito é acomodável apenas a mim. quando o vejo tão confortável em outra pessoa, uma sanha eriça meus pelos e o ciúme me enche de vontade de afiar as unhas em qualquer pescoço. somente eu posso ser sem ser de fato.

os olhos da menina são de um castanho impossível de pintar. suas pálbebras formam um ângulo inusitado quando questionada, como se quisesse dormir para fugir de uma obrigação, mas ao mesmo tempo, quer estar acordada para verificar as ações do seu interlocutor. os olhos dela estão longe dos meus cuidados, dos meus apelos e de minha mão que quer cercá-la de qualquer modo.

sei que os olhos dela sempre foram assim e que não foi por mim que ela aprendeu a fingir tão bem. conto todos os segundos que ela passa, distraida, a olhar o nada e a se perder no seu mundo, sem que eu possa acompanhá-la. seus olhos serão minha lembrança quando, já cansado de ter tentado entendê-la, o passado for minha única companhia e terá seu nome no vento que soprará ao meu ouvido.